segunda-feira, 28 de maio de 2012

Eternidade: Retrato vário de Jeremy Wade Delle


Não devem ter sido muito mais de vinte pessoas a assistir ao derradeiro momento, mas são certamente milhares aqueles que conhecem esse momento. Estranha forma de eternidade a dele.
Primeiro, pediu permissão à professora para se retirar momentaneamente da sala. Saiu. Completamente indiferentes ficaram todos. Aquele rapaz não tinha amigos, não tinha, para muitos, sequer um nome. Depois regressou à sala, para se tornar alguém, para ser eterno.
_Já tenho o que preciso.
disse à professora. E, antes que alguém sequer pudesse entender o que ele dizia, Jeremy apontou o revólver à têmpora e disparou. De repente, aquele rapaz era alguém. Não se chamava Jeremy, não tinha nome, mas era o rapaz de 15 anos que se suicidara em frente da turma inteira. Os salpicos de sangue espalharam-se e o corpo caiu no chão, já morto, esfriando, enquanto gelada estava a turma inteira e a professora.
Claro que Jeremy parecia um rapaz calmo, quase nem se dava por ele. É essa a condenação. Ali estava o corpo, estatelado na frente da plateia atónita que via, finalmente, o resultado do seu comportamento. Culpados, há sempre culpados. Culpada é a vítima, são os opressores, são os condescendentes. Jeremy não foi o primeiro e não foi o último.
Hoje dizemos o nome dele.
Jeremy Wade Delle é conhecido, é uma peculiar celebridade, e viverá por muitos e longos anos.
Um jovem de Seattle, vocalista de uma banda que estava a gravar as suas primeiras demos encontrou a notícia sobre Jeremy num jornal e decidiu fazer uma canção sobre ele. Hoje, os Pearl Jam são uma banda respeitada e, mais importante do que isso, ouvida. E 'Jeremy' é a canção que todos sabem cantar. Todos nós ligamos a música e cantamos aquela letra angustiosa que nos aponta o dedo e nos acusa. E nós não fizemos nada. Precisamente por isso somos culpados.
Houve um Jeremy na minha vida, houve um Jeremy na vida de cada uma das pessoas que ler isto que agora escrevo. O mais provável é que alguém leia e pense Não, na minha vida não houve. É exactamente esse o melhor sinal de que houve mesmo. Nós não nos lembramos dele, ou lembramo-nos muito vagamente. Víamo-lo passar silencioso nos corredores silencioso e desinteressado, ignorado por todos, mesmo por nós, mesmo por aqueles que também não davam muito de si.
E depois, acontece aquilo que Eddie Vedder diz. Chega o dia em que Jeremy fala. Esse falar não tem nada que ver com as palavras que Jeremy Wade Delle ou qualquer outro Jeremy possa ter dito. Quando eles falam, é para ter a última palavra. É para cairem, de seguida, mortos no chão.
Quantos de nós não podíamos ter sido mais um Jeremy? Quantos de nós não quisémos entrar para a eternidade? A vida, por condição, tem que ser temporária, e querer entrar na eternidade significa rejeitar a vida. Jeremy quis ser eterno, não no sentido em que as pessoas lhe soubessem o nome, mas no sentido em que não teria que viver mais. Pois, já dizia o poeta*, Viver sempre também cansa. Cansa mais ainda quando se vive sozinho. É improvável que a letra de Eddie Vedder seja uma recriação fiel da vida de Jeremy Wade Delle, até porque o próprio Vedder explica que misturou a história de Wade Delle com a história do Jeremy que havia na vida dele-Vedder.
Mas não é difícil imaginá-lo, como na primeira estrofe, sozinho no quarto a desenhar um mundo em que a sua vida não fosse o que era. Castelos e montanhas que pudesse governar, estando assim no topo do mundo, em vez de se sujeitar às pessoas que teimam em transformar o mundo numa espécie de cadeia alimentar em que não bastar estar no topo: é preciso também empurrar todos para o fundo. E não é difícil imaginar os pais, completamente indiferentes ao filho.
E não é preciso imaginar, pois sabemos que assim foi, que Jeremy só foi notado pelos que o rodeavam quando disse a sua última palavra. Como uma bala pode ser redentora! Como a passagem rápida e quase indolor do metal pelo cérebro pode ser tão mais bela e bondosa do que uma vida em que tudo é prometido constantemente e raramente as promessas redundam em realidades.
Foi o trinunfo, então, que perpassou os olhos de Jeremy quando encostou o revolver à têmpora. Os olhos azuis ter-se-ão enchido então de um brilho insólito e até o sangue que começou a empoçar à sua volta no chão, quando já tinha caído, parecia vivo e brilhante como um rio que assinala a passagem do tempo e marca um caminho para o eterno mar. Jeremy poderia ter sangrado um rio, porque estava finalmente livre. A sua boca direita e gélida poderia ter sorrido, pois que melhor recompensa poderia haver para o sofrimento de quinze anos de vida do que o choque em que a turma inteira ficara? Sim, eles estavam sentados nas suas carteiras, olhavam em frente atónitos e incrédulos, num misto de surpresa, de dúvida, de culpa e de medo. Jeremy era um justiceiro. Ou fez a justiça que pôde. Não durou mais do que uns dias, mas a verdade é que, se não fossem o revólver e a bala e o sangue, Jeremy nunca teria cobrado a ninguém o sofrimento que lhe haviam causado.
O mais provável é que, passado algum tempo, aqueles colegas de turma já o tivessem esquecido, já nem pensassem nele. Mas, por momentos, a dúvida atravessara-os com a ligeireza dolorosa de uma lâmina. Haviam-se perguntado se tinham culpa naquilo, se haviam feito tanto mal a alguém. E esse sofrimento era uma considerável moeda para o sofrimento de Jeremy.
E hoje, vinte e um anos depois, nós ligamos a música e cantamos, entre a compaixão e a admiração, a letra que Vedder escreveu tão sensivelmente. E é impossível que não vejamos nitidamente Jeremy. Pode ter sido esse rapaz mutista que passava por nós nos corredores, ou podemos ter sido precisamente nós. Mas conhecemo-lo.
Não foi uma canção que fez de Jeremy eterno, porque eterno já ele era. A canção veio relembrá-lo.

*o poeta é José Gomes Ferreira, e a citação é o título do primeiro poema da sua 'Poesia 1'

J.B.

domingo, 22 de abril de 2012

Julgamento: Retrato de George Huguely antes da condenação


Tinha Amor no nome. Love. Yeardley Love. George repete este nome, vezes e vezes sem conta, mas o nome não significa nada. Desaperta o botão da camisa, sente-se a sufocar, não consegue deixar de se sentir sufocado apesar de já se ter habituado a usar camisa. Como se uma camisa o fizesse parecer menos culpado. Já toda a gente decidiu. Nem pensa nisso. Yeardley, pensa ele. Tinha Amor no nome.
Ao fundo do corredor, quase toda a gente passa de fato, os fatos são sempre escuros, de vez em quando destaca-se a cor de alguma gravata. George não usa gravata, não usou nenhuma das vezes em que compareceu no tribunal. Não ressalta cor nenhuma nele.
Vê um vago reflexo na vidraça à sua frente. O mesmo rosto. O cabelo já foi rapado, mas o rosto continua igual, plácido, belo, sedutor e completamente vazio. Pelo menos o olhar, vazio, perdido, como se algo se tivesse ausentado do corpo e todo o corpo, na sua imobilidade, esperasse o regresso. O corpo forte, enrigecido pelo lacrosse, os braços grossos e as mãos grandes, essas que o ajudaram a matar Yeardley, tudo, agora, está invadido por uma inércia, por uma debilidade. E vem depois o mutismo, as respostas vagas e confusas, as emoções nem falsas nem verdadeiras perante o processo. Talvez seja culpa, ou então é o medo. Ou então é por estar sóbrio.
George Huguely é aquele que as pessoas, the people, querem atrás das grades. Um bêbado, um agressor, um desequilibrado. E por fim um assassino. Geoge Huguely é também este, que se senta, à espera do veredicto. Há mais de oito horas. Vinte e dois de fevereiro de 2012, o dia de que toda a gente estava à espera. Menos George. O advogado não fala, de vez em quando levanta-se, dá uma volta, bufa de impaciência, volta a sentar-se. E George ajeita o corpo atlético e asténico no banco, quase sem dar pelo desconforto, não fala, não quer falar, não tem vontade. Tinha vontade, isso sim, de um copo. Vodka, whiksy, cerveja, qualquer coisa serviria. Quer-se dizer, qualquer coisa ajudaria. Ajudaria o tempo a passar, ajudaria o corpo de George a sentir, fosse o que fosse, mas a sentir.
Naquele dia em que arrombara a porta da casa de Yeardley, no momento em que a estrangulara e lhe tentara partir o crâneo contra a parede, nesse dia, ele sentia. Sentia... sentia coisas.
Também no tempo do colégio masculino, ele sentia coisas. Sentia tédio, e sentia vontade de fugir. Mas sentia qualquer coisa. Assim como nos jogos de lacrosse, depois. Sentia-se vitorioso. Compensado até, por aqueles anos passados sempre entre rapazes. Ou será que não? Se calhar não sentia. Mesmo durante o curto namoro com Yeardley, a que tinha Amor no nome e depois ele matou, pareceu-lhe que sentia, mas se calhar não sentia nada.
Sentiu, isso de certeza que sentiu, muitas coisas depois. Quando ela o deixou. Sentia raiva e ódio e vontade de a destruir. Mas pelo menos sentia. Seria esse o pior cenário? O pior mesmo não seria, uma vez que foi o facto de, no meio de tudo isso, a ter morto que realmente o levou a tudo aquilo. Tribunal, advogados, grand juri, audiências, acusações. Seria de esperar que custasse a George a perda daquele futuro de jogador profissional de lacrosse, com dinheiro, estatuto, rodeado finalmente de mulheres. Mas nada.
Nem ali, sentado há mais de oito horas no dia que todos, menos ele, ansiavam, George sente seja o que for. Na melhor das hipóteses, está um pouco entediado e a precisar de uma bebida. Nada mais.
O corpo atlético não o favorece na prisão, como seria de esperar. Talvez se pudesse molhar os lábios num copo de vodka até apreciasse a ironia de, uma vez mais, estar rodeado de homens. A sobriedade não ajuda, claro. É a noção do tempo que se torna demasiado realista. E as noites mal dormidas. Pensou tanto naquele nome, Yeardley, que lentamente o nome passou a não designar nada. Tudo estava já vazio. A partir daí, o julgamento estava já selado. Indiferente era, afinal, aquele dia que todos os outros esperavam.
Chamam-no. O corpo, atlético em aparência, mas asténico na verdade, de George ergue-se com toda a serenidade do banco, nada afectado pela clara tensão do advogado. Encaminha-se para a sala. Nove horas de deliberação. Mas George entra na sala e, por momentos, quase sorri. Quase o corpo sente alguma coisa. E é isso. É vontade de sorrir. Que interessa a condenação? O julgamento já tinha terminado.

J.B.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Apontamentos para 'Myra, loira e morena' (2)



 Myra olha-se ao espelho como se tivesse o chavão de “mulher mais maquiavélica” gravado no peito. Ouve vozes no escuro da sua cela. São as vozes dos miúdos que matou. Myra em loira estava em transe, repleta de poluição visual, de desejo, de tesão. 
 Eu teria sido uma boa dona de casa. Eu teria sido...
 Os miúdos que morreram são o retrato de Myra em pequena: a felicidade. Ela corta os laços que a prendem a um passado normal, criando um novo presente repleto de tudo que há de errado. De saia rodada deixa-se fotografar ao lado do seu marido. Os seus olhos brilham. Os seus olhos, que viram a dor e o sofrimento dos miúdos enquanto morriam, brilham. A sua boca sorri, a mesma que seduziu os miúdos a entrar naquele quarto de horrores de luz vermelha. Myra pintou o cabelo como quem diz: eu não sou mais eu, sou o que ele quiser e o que o Inferno aceitar. 
 A mulher mais maquiavélica é aquela que deixa o seu retrato de criança pendurado ao lado do corpo de Cristo, enquanto grita de prazer. 
 Eu em católica – mais uma pele de cordeiro para me aquecer neste inverno duradouro. As máscaras multiplicam-se quando se olha ao espelho no quarto de hóspedes de sua majestade. As máscaras acompanham as páginas do seu diário infantil.
 Ian olhou para mim
 Ian falou comigo
 Ian Ian Ian
 (Ian) é perverso e nazi, eu serei perversa e nazi
 eu serei a vida que ele me dere, a mulher que ele quiser 
 Escreve no seu diário infantil como quem fala com um padre. Myra, Deus não existe, diz a voz ao seu lado. Esquece a vida católica que o desejo te deu, esquece esses modelos de merda que estão escritos em papel fininho. O corpo distancia-se da mente e esta junta-se a do homem nazi. O corpo já não é o mesmo. Myra em corpo de mulher é o chamariz perfeito. Myra loira é diferente daquela miúda que vivia com a sua avó e brincava com o gato felpudo que saltava de telhado em telhado. 
 Myra é uma vaca pérfida de uma maldade extrema.
 Myra é a mulher mais maquiavélica. 


 Agora arrependo-me de todos os pecados. Dou continuidade à crença que um dia adquiri naqueles tempos morenos. Deus agora rezo com estas mãos que brincaram com o sexo e com o sangue para pedir o perdão dos meus pecados. Tenho na mão um terço feito de calhaus. Amarro-o junto ao meu peito tatuado. Junto ao meu peito até abrir feridas. Basta-me rezar meu Deus para que a minha vida ainda tenha sentido. 
 Deus responde em silêncio. 
 Continua a rezar dentro da sua pequena jaula convertida em altar de rendas e livros de orações. À noite abre a janela e deixa entrar a fria brisa nocturna. Senta-se num canto da pequena cama e finge ouvir o ruído daquele deserto cinza, vermelho e castanho que eram as charnecas transformadas em cemitério de crianças. 
 Agora arrependo-me dos meus pecados da mesma maneira que me arrependo do dia em que escolhi. Tenho uma pilha de livros na mesa a minha frente e nenhum deles fala deste rosto que tenho que estudar todos os dias, deste rosto de mágoas. Apetece-me partir o espelho e não ver mais este rosto perfeitamente organizado. Apetece-me tudo e não faço nada. Por momentos pensei que Deus vinha naquela garrafa de líquido castanho, pensei que mudando o topo do meu rosto lavava todos os meus pecados e as minhas escolhas. Que infantil fui eu ao pensar que apagava aqueles gritos com a mesma facilidade com que esfrego o sabão nestas mãos que nada mais são que as ferramentas do mal. 
 Como mulher tive o direito a escolher e como ser-pensante o dever de viver com o lixo que o meu livre pensamento trás. Como mulher tive o direito de escolher as armas de um muito completo arsenal. Que estranho e arcaico este mundo em que fui criada e que excitante este retrato de futuro que um dia tentei pintar.

R.d.P.F.

terça-feira, 20 de março de 2012

Apontamentos para 'Myra, loira e morena'



Myra de voz colocada e cabelo oxigenado.
 Vou voltar á minha cor normal, como todas as outras, assim sou igual a todas as outras. Fala ao espelho, de voz colocada e trejeitos de vadia – assim a chamam na rua. Myra que agora pinta o cabelo de castanho, voltando ás origens, voltando a ser morena, viveu o inferno pensando ser o êxtase enquanto esfaqueava os pequenos. Agora é morena e pensa que é como todas as outras na prisão, as prostitutas, as drogadas e as assassinas. Saí da sua cela e todas a olham.
 Ela é a mesma! Pode pintar o cabelo ou mudar a cara toda, mas para mim será sempre a cabra que matou todas aquelas crianças. O gajo não tem culpa, ela é que puxava os fios! Acredito, por Deus que ela é o demónio. 
 Se não o é, chegou lá perto. 
 Myra de voz colocada e cabelo castanho.
 Myra com os mesmos olhos e boca -  a vaca que matou todas aquelas crianças! As mulheres falam entre si e Myra passa como uma sombra por entre elas na sala de convívio. É um mito entre as presidiárias, de duas faces: a admiração pela figura e nojo pela mulher. As mães não falam dela pois isso desperta sentimentos de homicídio. Myra Hindley pensa em morrer? Não acredita no Paraíso nem no Inferno, como pode? Ao enterrar Keith Bennett sentiu algo quente a apodera-la , algo maternal. Nesse momento sorriu como se fosse uma criança. O corpo de Keith Bennett, o corpo da criança deu-lhe a alegria da recordação, de quando brincava nas ruas, quando a sua mãe lhe dava umas moedinhas para comprar gelados que não sabiam a nada. Quando se toca o paraíso em vida, não se consegue acreditar nele depois da morte. E sendo assim como pode querer morrer? Myra escreve no seu caderno:
a morte é morrer, acabar, deixar de existir – eu não quero isso, quero esta vida e este oxigénio. 
 Myra de voz colocada arrepende-se do cabelo castanho. 
 Não mudou nada, continuou a mesma, apenas morena. Perante a violência dos seus dias bloqueia, já não é a mesma. Matou e violentou com calma, com tempo e com paz. Ironicamente, na prisão, tempo é ouro que falta.

R.d. P.F.

domingo, 18 de março de 2012

Consternação: Retrato de Christina Rossetti como Virgem Maria


É de Christina Rossetti aquele rosto fixo num ponto que está sob a realidade. Mas ali, ela não é Christina. É a Virgem Maria, bordando, durante a sua infância. Os longos cabelos castanhos foram feitos loiros pelo irmão, Dante Gabriel, mas a expressão de alguma forma distante do lugar em que se encontra é a mesma que encontramos quando o mesmo irmão a retrata enquanto ela mesma, e também na maioria das poucas fotografias que dela foram tiradas.
Ali sentada, vestida duma túnica cinzenta de colarinho com folhos sobre a camisola verde, ela é uma rapariguinha que, mesmo mudada em Virgem Maria, revela já a fragilidade do corpo que, com o decorrer dos anos, se deformaria por causa das doenças e dos desgostos que lhe limitaram a vida e lhe ampliaram a escrita. Tem dezoito anos. No ano anterior, ficara noiva, como seria de esperar de uma rapariga em tempo vitoriano. 
Tem dezoito anos e aos vinte, Christina invoca diferenças religiosas com James Collinson como razão para terminar o noivado. Não passa de uma desculpa confusa e desajeitada para uma relação que fora sempre, também ela, confusa e desajeitada. Com o fim do noivado, aos vinte anos, Christina fica só.
Mas olhamos para ela, ali, pintada por Dante Gabriel, e o que vemos é uma mulher só. Nesse mesmo ano de 1848, ela escreveria um dos poemas que dela mais se havia de conhecer e repetir ao ponto da quase exaustão: chama-se Song, mas referir-se-iam a ele pelo primeiro verso, When I am dead my dearest. Nele, não sei se é por ironia se é por rejeição a compromissos que Christina diz a quem ama que, se quiser, a lembre e, se quiser, a esqueça. Tal como expressa a sua intenção de, se quiser, esquecer e, se quiser, lembrar. 
Aquele rosto é talvez o reflexo de uma consciência. Aos dezoito anos, Christina já escreveu muitos poemas. Alguns aproveitáveis, e até um ou outro em que a difícil intensidade dos grandes poemas que viria a escrever já deu sinais. Escreveu a partir de referências bíblicas que sempre incidem sobre a fatalidade e a desventura. Timidamente, arriscou-se a escrever sobre um amor que pouco conhecia e do qual, na vida, experienciaria só o lado do desamparo e da impossibilidade.
Esta rapariga cuja imobilidade parece evidente é a mesma que, numa discussão com a mãe, rasga o próprio braço com uma tesoura. Discutia constantemente com Frances Lavinia, cujos rigores incidiam sobretudo nas filhas e foi Christina quem mais se ressentiu. No meio de uma dessas discussões, Christina agarra numa tesoura e rasga o próprio braço. Imagino-lho e rosto alterado pela raiva e pela impotência perante as repreensões da mãe, raiva e impotência tão intensas que impedem que a expressão do rosto se altere, apesar da dor aguda do corte no braço que sangra profusamente. E imagino-a, com o braço estendido e rígido, pingando sangue no chão, mas o olhar sem vacilar do da mãe, porque Christina foi sempre firme e obstinada ao ponto do exagero.
E ali está ela. Torna-se Virgem Maria e segura uma agulha para o bordado. Uma agulha, como se, de alguma forma, costurasse o rasgão que se fizera com a tesoura. Mas é no olhar que essa ferida se fecha. Christina olha para além do mundo, procura um feixe de luz. Sabe, já sabe, que toda a sua vida será marcada pela consternação. Conhece já a vida de afectos poucos e controlados com minúcia. Conhece o único amor que alguma vez conhecerá, o amor vivido no mutismo e no isolamento. Conhece o deus em quem crerá com o fervor que se dedica a uma compensação por uma vida em que a única hipótese foi a solidão. Conhece a doença do corpo frágil que lhe incitará as tendências rotineiras e lhe deformará o corpo por enquanto elegante e o rosto por enquanto belo e delicado. E conhece as restrições do seu sexo, que só muito depois da sua morte se tornariam susceptíveis de mudança.
Em tudo isso que ela já conhece, quarenta e seis anos antes de morrer, o seu olhar está fixo quando Dante Gabriel a pinta como Virgem Maria. Já ela começa a o seu luto pela perda que é a de si mesma, já ela começa o seu sofrimento, como se tivesse entrado na idade adulta já munida de tudo aquilo que a Virgem Maria conheceria em idade mais avançada. Dificilmente, afinal me contradigo, Christina poderia ser mais ela ao posar como Virgem Maria.

J.B.