Não devem ter sido muito mais de vinte pessoas a assistir ao derradeiro momento, mas são certamente milhares aqueles que conhecem esse momento. Estranha forma de eternidade a dele.
Primeiro, pediu permissão à professora para se retirar momentaneamente da sala. Saiu. Completamente indiferentes ficaram todos. Aquele rapaz não tinha amigos, não tinha, para muitos, sequer um nome. Depois regressou à sala, para se tornar alguém, para ser eterno.
_Já tenho o que preciso.
disse à professora. E, antes que alguém sequer pudesse entender o que ele dizia, Jeremy apontou o revólver à têmpora e disparou. De repente, aquele rapaz era alguém. Não se chamava Jeremy, não tinha nome, mas era o rapaz de 15 anos que se suicidara em frente da turma inteira. Os salpicos de sangue espalharam-se e o corpo caiu no chão, já morto, esfriando, enquanto gelada estava a turma inteira e a professora.
Claro que Jeremy parecia um rapaz calmo, quase nem se dava por ele. É essa a condenação. Ali estava o corpo, estatelado na frente da plateia atónita que via, finalmente, o resultado do seu comportamento. Culpados, há sempre culpados. Culpada é a vítima, são os opressores, são os condescendentes. Jeremy não foi o primeiro e não foi o último.
Hoje dizemos o nome dele.
Jeremy Wade Delle é conhecido, é uma peculiar celebridade, e viverá por muitos e longos anos.
Um jovem de Seattle, vocalista de uma banda que estava a gravar as suas primeiras demos encontrou a notícia sobre Jeremy num jornal e decidiu fazer uma canção sobre ele. Hoje, os Pearl Jam são uma banda respeitada e, mais importante do que isso, ouvida. E 'Jeremy' é a canção que todos sabem cantar. Todos nós ligamos a música e cantamos aquela letra angustiosa que nos aponta o dedo e nos acusa. E nós não fizemos nada. Precisamente por isso somos culpados.
Houve um Jeremy na minha vida, houve um Jeremy na vida de cada uma das pessoas que ler isto que agora escrevo. O mais provável é que alguém leia e pense Não, na minha vida não houve. É exactamente esse o melhor sinal de que houve mesmo. Nós não nos lembramos dele, ou lembramo-nos muito vagamente. Víamo-lo passar silencioso nos corredores silencioso e desinteressado, ignorado por todos, mesmo por nós, mesmo por aqueles que também não davam muito de si.
E depois, acontece aquilo que Eddie Vedder diz. Chega o dia em que Jeremy fala. Esse falar não tem nada que ver com as palavras que Jeremy Wade Delle ou qualquer outro Jeremy possa ter dito. Quando eles falam, é para ter a última palavra. É para cairem, de seguida, mortos no chão.
Quantos de nós não podíamos ter sido mais um Jeremy? Quantos de nós não quisémos entrar para a eternidade? A vida, por condição, tem que ser temporária, e querer entrar na eternidade significa rejeitar a vida. Jeremy quis ser eterno, não no sentido em que as pessoas lhe soubessem o nome, mas no sentido em que não teria que viver mais. Pois, já dizia o poeta*, Viver sempre também cansa. Cansa mais ainda quando se vive sozinho. É improvável que a letra de Eddie Vedder seja uma recriação fiel da vida de Jeremy Wade Delle, até porque o próprio Vedder explica que misturou a história de Wade Delle com a história do Jeremy que havia na vida dele-Vedder.
Mas não é difícil imaginá-lo, como na primeira estrofe, sozinho no quarto a desenhar um mundo em que a sua vida não fosse o que era. Castelos e montanhas que pudesse governar, estando assim no topo do mundo, em vez de se sujeitar às pessoas que teimam em transformar o mundo numa espécie de cadeia alimentar em que não bastar estar no topo: é preciso também empurrar todos para o fundo. E não é difícil imaginar os pais, completamente indiferentes ao filho.
E não é preciso imaginar, pois sabemos que assim foi, que Jeremy só foi notado pelos que o rodeavam quando disse a sua última palavra. Como uma bala pode ser redentora! Como a passagem rápida e quase indolor do metal pelo cérebro pode ser tão mais bela e bondosa do que uma vida em que tudo é prometido constantemente e raramente as promessas redundam em realidades.
Foi o trinunfo, então, que perpassou os olhos de Jeremy quando encostou o revolver à têmpora. Os olhos azuis ter-se-ão enchido então de um brilho insólito e até o sangue que começou a empoçar à sua volta no chão, quando já tinha caído, parecia vivo e brilhante como um rio que assinala a passagem do tempo e marca um caminho para o eterno mar. Jeremy poderia ter sangrado um rio, porque estava finalmente livre. A sua boca direita e gélida poderia ter sorrido, pois que melhor recompensa poderia haver para o sofrimento de quinze anos de vida do que o choque em que a turma inteira ficara? Sim, eles estavam sentados nas suas carteiras, olhavam em frente atónitos e incrédulos, num misto de surpresa, de dúvida, de culpa e de medo. Jeremy era um justiceiro. Ou fez a justiça que pôde. Não durou mais do que uns dias, mas a verdade é que, se não fossem o revólver e a bala e o sangue, Jeremy nunca teria cobrado a ninguém o sofrimento que lhe haviam causado.
O mais provável é que, passado algum tempo, aqueles colegas de turma já o tivessem esquecido, já nem pensassem nele. Mas, por momentos, a dúvida atravessara-os com a ligeireza dolorosa de uma lâmina. Haviam-se perguntado se tinham culpa naquilo, se haviam feito tanto mal a alguém. E esse sofrimento era uma considerável moeda para o sofrimento de Jeremy.
E hoje, vinte e um anos depois, nós ligamos a música e cantamos, entre a compaixão e a admiração, a letra que Vedder escreveu tão sensivelmente. E é impossível que não vejamos nitidamente Jeremy. Pode ter sido esse rapaz mutista que passava por nós nos corredores, ou podemos ter sido precisamente nós. Mas conhecemo-lo.
Não foi uma canção que fez de Jeremy eterno, porque eterno já ele era. A canção veio relembrá-lo.
*o poeta é José Gomes Ferreira, e a citação é o título do primeiro poema da sua 'Poesia 1'
J.B.