domingo, 22 de abril de 2012

Julgamento: Retrato de George Huguely antes da condenação


Tinha Amor no nome. Love. Yeardley Love. George repete este nome, vezes e vezes sem conta, mas o nome não significa nada. Desaperta o botão da camisa, sente-se a sufocar, não consegue deixar de se sentir sufocado apesar de já se ter habituado a usar camisa. Como se uma camisa o fizesse parecer menos culpado. Já toda a gente decidiu. Nem pensa nisso. Yeardley, pensa ele. Tinha Amor no nome.
Ao fundo do corredor, quase toda a gente passa de fato, os fatos são sempre escuros, de vez em quando destaca-se a cor de alguma gravata. George não usa gravata, não usou nenhuma das vezes em que compareceu no tribunal. Não ressalta cor nenhuma nele.
Vê um vago reflexo na vidraça à sua frente. O mesmo rosto. O cabelo já foi rapado, mas o rosto continua igual, plácido, belo, sedutor e completamente vazio. Pelo menos o olhar, vazio, perdido, como se algo se tivesse ausentado do corpo e todo o corpo, na sua imobilidade, esperasse o regresso. O corpo forte, enrigecido pelo lacrosse, os braços grossos e as mãos grandes, essas que o ajudaram a matar Yeardley, tudo, agora, está invadido por uma inércia, por uma debilidade. E vem depois o mutismo, as respostas vagas e confusas, as emoções nem falsas nem verdadeiras perante o processo. Talvez seja culpa, ou então é o medo. Ou então é por estar sóbrio.
George Huguely é aquele que as pessoas, the people, querem atrás das grades. Um bêbado, um agressor, um desequilibrado. E por fim um assassino. Geoge Huguely é também este, que se senta, à espera do veredicto. Há mais de oito horas. Vinte e dois de fevereiro de 2012, o dia de que toda a gente estava à espera. Menos George. O advogado não fala, de vez em quando levanta-se, dá uma volta, bufa de impaciência, volta a sentar-se. E George ajeita o corpo atlético e asténico no banco, quase sem dar pelo desconforto, não fala, não quer falar, não tem vontade. Tinha vontade, isso sim, de um copo. Vodka, whiksy, cerveja, qualquer coisa serviria. Quer-se dizer, qualquer coisa ajudaria. Ajudaria o tempo a passar, ajudaria o corpo de George a sentir, fosse o que fosse, mas a sentir.
Naquele dia em que arrombara a porta da casa de Yeardley, no momento em que a estrangulara e lhe tentara partir o crâneo contra a parede, nesse dia, ele sentia. Sentia... sentia coisas.
Também no tempo do colégio masculino, ele sentia coisas. Sentia tédio, e sentia vontade de fugir. Mas sentia qualquer coisa. Assim como nos jogos de lacrosse, depois. Sentia-se vitorioso. Compensado até, por aqueles anos passados sempre entre rapazes. Ou será que não? Se calhar não sentia. Mesmo durante o curto namoro com Yeardley, a que tinha Amor no nome e depois ele matou, pareceu-lhe que sentia, mas se calhar não sentia nada.
Sentiu, isso de certeza que sentiu, muitas coisas depois. Quando ela o deixou. Sentia raiva e ódio e vontade de a destruir. Mas pelo menos sentia. Seria esse o pior cenário? O pior mesmo não seria, uma vez que foi o facto de, no meio de tudo isso, a ter morto que realmente o levou a tudo aquilo. Tribunal, advogados, grand juri, audiências, acusações. Seria de esperar que custasse a George a perda daquele futuro de jogador profissional de lacrosse, com dinheiro, estatuto, rodeado finalmente de mulheres. Mas nada.
Nem ali, sentado há mais de oito horas no dia que todos, menos ele, ansiavam, George sente seja o que for. Na melhor das hipóteses, está um pouco entediado e a precisar de uma bebida. Nada mais.
O corpo atlético não o favorece na prisão, como seria de esperar. Talvez se pudesse molhar os lábios num copo de vodka até apreciasse a ironia de, uma vez mais, estar rodeado de homens. A sobriedade não ajuda, claro. É a noção do tempo que se torna demasiado realista. E as noites mal dormidas. Pensou tanto naquele nome, Yeardley, que lentamente o nome passou a não designar nada. Tudo estava já vazio. A partir daí, o julgamento estava já selado. Indiferente era, afinal, aquele dia que todos os outros esperavam.
Chamam-no. O corpo, atlético em aparência, mas asténico na verdade, de George ergue-se com toda a serenidade do banco, nada afectado pela clara tensão do advogado. Encaminha-se para a sala. Nove horas de deliberação. Mas George entra na sala e, por momentos, quase sorri. Quase o corpo sente alguma coisa. E é isso. É vontade de sorrir. Que interessa a condenação? O julgamento já tinha terminado.

J.B.

1 comentário:

  1. Brutal!!! Um retrato de uma estrutura narcísica espantoso. Gostei muito. Claro, com acentuados traços de psicose. O Narcisismo Maligno existe na psicose e na maioria da perturbação mental. Por destino ou não, até o nome ajudou...

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