domingo, 18 de março de 2012

Consternação: Retrato de Christina Rossetti como Virgem Maria


É de Christina Rossetti aquele rosto fixo num ponto que está sob a realidade. Mas ali, ela não é Christina. É a Virgem Maria, bordando, durante a sua infância. Os longos cabelos castanhos foram feitos loiros pelo irmão, Dante Gabriel, mas a expressão de alguma forma distante do lugar em que se encontra é a mesma que encontramos quando o mesmo irmão a retrata enquanto ela mesma, e também na maioria das poucas fotografias que dela foram tiradas.
Ali sentada, vestida duma túnica cinzenta de colarinho com folhos sobre a camisola verde, ela é uma rapariguinha que, mesmo mudada em Virgem Maria, revela já a fragilidade do corpo que, com o decorrer dos anos, se deformaria por causa das doenças e dos desgostos que lhe limitaram a vida e lhe ampliaram a escrita. Tem dezoito anos. No ano anterior, ficara noiva, como seria de esperar de uma rapariga em tempo vitoriano. 
Tem dezoito anos e aos vinte, Christina invoca diferenças religiosas com James Collinson como razão para terminar o noivado. Não passa de uma desculpa confusa e desajeitada para uma relação que fora sempre, também ela, confusa e desajeitada. Com o fim do noivado, aos vinte anos, Christina fica só.
Mas olhamos para ela, ali, pintada por Dante Gabriel, e o que vemos é uma mulher só. Nesse mesmo ano de 1848, ela escreveria um dos poemas que dela mais se havia de conhecer e repetir ao ponto da quase exaustão: chama-se Song, mas referir-se-iam a ele pelo primeiro verso, When I am dead my dearest. Nele, não sei se é por ironia se é por rejeição a compromissos que Christina diz a quem ama que, se quiser, a lembre e, se quiser, a esqueça. Tal como expressa a sua intenção de, se quiser, esquecer e, se quiser, lembrar. 
Aquele rosto é talvez o reflexo de uma consciência. Aos dezoito anos, Christina já escreveu muitos poemas. Alguns aproveitáveis, e até um ou outro em que a difícil intensidade dos grandes poemas que viria a escrever já deu sinais. Escreveu a partir de referências bíblicas que sempre incidem sobre a fatalidade e a desventura. Timidamente, arriscou-se a escrever sobre um amor que pouco conhecia e do qual, na vida, experienciaria só o lado do desamparo e da impossibilidade.
Esta rapariga cuja imobilidade parece evidente é a mesma que, numa discussão com a mãe, rasga o próprio braço com uma tesoura. Discutia constantemente com Frances Lavinia, cujos rigores incidiam sobretudo nas filhas e foi Christina quem mais se ressentiu. No meio de uma dessas discussões, Christina agarra numa tesoura e rasga o próprio braço. Imagino-lho e rosto alterado pela raiva e pela impotência perante as repreensões da mãe, raiva e impotência tão intensas que impedem que a expressão do rosto se altere, apesar da dor aguda do corte no braço que sangra profusamente. E imagino-a, com o braço estendido e rígido, pingando sangue no chão, mas o olhar sem vacilar do da mãe, porque Christina foi sempre firme e obstinada ao ponto do exagero.
E ali está ela. Torna-se Virgem Maria e segura uma agulha para o bordado. Uma agulha, como se, de alguma forma, costurasse o rasgão que se fizera com a tesoura. Mas é no olhar que essa ferida se fecha. Christina olha para além do mundo, procura um feixe de luz. Sabe, já sabe, que toda a sua vida será marcada pela consternação. Conhece já a vida de afectos poucos e controlados com minúcia. Conhece o único amor que alguma vez conhecerá, o amor vivido no mutismo e no isolamento. Conhece o deus em quem crerá com o fervor que se dedica a uma compensação por uma vida em que a única hipótese foi a solidão. Conhece a doença do corpo frágil que lhe incitará as tendências rotineiras e lhe deformará o corpo por enquanto elegante e o rosto por enquanto belo e delicado. E conhece as restrições do seu sexo, que só muito depois da sua morte se tornariam susceptíveis de mudança.
Em tudo isso que ela já conhece, quarenta e seis anos antes de morrer, o seu olhar está fixo quando Dante Gabriel a pinta como Virgem Maria. Já ela começa a o seu luto pela perda que é a de si mesma, já ela começa o seu sofrimento, como se tivesse entrado na idade adulta já munida de tudo aquilo que a Virgem Maria conheceria em idade mais avançada. Dificilmente, afinal me contradigo, Christina poderia ser mais ela ao posar como Virgem Maria.

J.B.

1 comentário:

  1. PARABÉNS aos IMPROVÁVEIS!!! Gostei muito do aspecto gráfico e do artigo inicial. Nada melhor que a análise de um retrato e neste caso particular - o retrato da Christina Rossetti!!!
    Acrescentaria que o OLHAR da Virgem Maria está voltado para o interior, é a sensação que dá ao observar. Um olhar vazio, centrado no nada...Alguém ensimesmado, parado no tempo!!!
    Claro que acho muito bem estruturada a análise do João Borges, um dos improváveis deste blogue.
    "Torna-se Virgem Maria e segura uma agulha para o bordado. Uma agulha, como se, de alguma forma, costurasse o rasgão que se fizera com a tesoura. Mas é no olhar que essa ferida se fecha".
    Como seria de esperar...Alguns fragmentos do texto são pura poesia!!! A observação do olhar ensimesmado encontra-se precisamente na frase "Mas é no olhar que essa ferida se fecha"
    PERFEITO!!!!!!

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