quinta-feira, 19 de abril de 2012

Apontamentos para 'Myra, loira e morena' (2)



 Myra olha-se ao espelho como se tivesse o chavão de “mulher mais maquiavélica” gravado no peito. Ouve vozes no escuro da sua cela. São as vozes dos miúdos que matou. Myra em loira estava em transe, repleta de poluição visual, de desejo, de tesão. 
 Eu teria sido uma boa dona de casa. Eu teria sido...
 Os miúdos que morreram são o retrato de Myra em pequena: a felicidade. Ela corta os laços que a prendem a um passado normal, criando um novo presente repleto de tudo que há de errado. De saia rodada deixa-se fotografar ao lado do seu marido. Os seus olhos brilham. Os seus olhos, que viram a dor e o sofrimento dos miúdos enquanto morriam, brilham. A sua boca sorri, a mesma que seduziu os miúdos a entrar naquele quarto de horrores de luz vermelha. Myra pintou o cabelo como quem diz: eu não sou mais eu, sou o que ele quiser e o que o Inferno aceitar. 
 A mulher mais maquiavélica é aquela que deixa o seu retrato de criança pendurado ao lado do corpo de Cristo, enquanto grita de prazer. 
 Eu em católica – mais uma pele de cordeiro para me aquecer neste inverno duradouro. As máscaras multiplicam-se quando se olha ao espelho no quarto de hóspedes de sua majestade. As máscaras acompanham as páginas do seu diário infantil.
 Ian olhou para mim
 Ian falou comigo
 Ian Ian Ian
 (Ian) é perverso e nazi, eu serei perversa e nazi
 eu serei a vida que ele me dere, a mulher que ele quiser 
 Escreve no seu diário infantil como quem fala com um padre. Myra, Deus não existe, diz a voz ao seu lado. Esquece a vida católica que o desejo te deu, esquece esses modelos de merda que estão escritos em papel fininho. O corpo distancia-se da mente e esta junta-se a do homem nazi. O corpo já não é o mesmo. Myra em corpo de mulher é o chamariz perfeito. Myra loira é diferente daquela miúda que vivia com a sua avó e brincava com o gato felpudo que saltava de telhado em telhado. 
 Myra é uma vaca pérfida de uma maldade extrema.
 Myra é a mulher mais maquiavélica. 


 Agora arrependo-me de todos os pecados. Dou continuidade à crença que um dia adquiri naqueles tempos morenos. Deus agora rezo com estas mãos que brincaram com o sexo e com o sangue para pedir o perdão dos meus pecados. Tenho na mão um terço feito de calhaus. Amarro-o junto ao meu peito tatuado. Junto ao meu peito até abrir feridas. Basta-me rezar meu Deus para que a minha vida ainda tenha sentido. 
 Deus responde em silêncio. 
 Continua a rezar dentro da sua pequena jaula convertida em altar de rendas e livros de orações. À noite abre a janela e deixa entrar a fria brisa nocturna. Senta-se num canto da pequena cama e finge ouvir o ruído daquele deserto cinza, vermelho e castanho que eram as charnecas transformadas em cemitério de crianças. 
 Agora arrependo-me dos meus pecados da mesma maneira que me arrependo do dia em que escolhi. Tenho uma pilha de livros na mesa a minha frente e nenhum deles fala deste rosto que tenho que estudar todos os dias, deste rosto de mágoas. Apetece-me partir o espelho e não ver mais este rosto perfeitamente organizado. Apetece-me tudo e não faço nada. Por momentos pensei que Deus vinha naquela garrafa de líquido castanho, pensei que mudando o topo do meu rosto lavava todos os meus pecados e as minhas escolhas. Que infantil fui eu ao pensar que apagava aqueles gritos com a mesma facilidade com que esfrego o sabão nestas mãos que nada mais são que as ferramentas do mal. 
 Como mulher tive o direito a escolher e como ser-pensante o dever de viver com o lixo que o meu livre pensamento trás. Como mulher tive o direito de escolher as armas de um muito completo arsenal. Que estranho e arcaico este mundo em que fui criada e que excitante este retrato de futuro que um dia tentei pintar.

R.d.P.F.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Gostei muito. Um retrato terrível de uma mulher perturbada na sua fragilidade. PERDIDA, PROFUNDAMENTE PERDIDA. Quer agradar ao amante, não tem vontade própria. Talvez mate nela a criança que nunca chegou a ser!
    Estou muito interessada nestes retratos. Agora fico à espera de mais!!!Parabéns.

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